Reflexão: Qual o propósito do Livro segundo evangelho de João?
O
Evangelho de João é o único entre os evangelhos que traz claramente
sua declaração de propósito, VEJAMOS.
Na
verdade, fez Jesus diante dos discípulos muito outros sinais que não estão
escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome
– João 20.30-31
Nesse
verso podemos encontrar ao menos quatro declarações de propósito do autor: (1)
Propósito Evangelístico; (2) Propósito de Incentivar a Perseverança; (3)
Propósito Teológico; (4) Propósito Apologético. Abaixo, passamos a observar
como cada um desses se relaciona com o Evangelho como um todo.
Propósito Evangelístico
A relação
entre a fé e vida eterna é claramente exposta na teologia Joanina. No terceiro
capítulo encontramos: “para que todo o que nele crê tenha a vida eterna”
(v.15); “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
(v.16); “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia,
se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira
de Deus” (v.36; cf. Jo.5.24; 6.35, 40, 47; 11.25). Essa característica
também é bem encontrada na literatura joanina: “Estas coisas vos escrevi, a fim
de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em
o nome do Filho de Deus” (1Jo.5.13).
É
fundamental ressaltar que tal conceito também é testemunhado pelos milagres
(sinais; gr. semeion) realizados por Cristo e registrados por João: “Na
verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não
estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida
em seu nome” (Jo.20.31).
As ações
milagrosas de Cristo relatadas no Evangelho têm por motivo apresentar sua Real
Pessoa para Seus expectadores; para que compreendam sua Divindade e
Messianidade e para que possam depositar sua fé Nele. E isso é visto em vários
dos seus milagres: “Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da
Galiléia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele”
(Jo.2.11); “Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo
os sinais que ele fazia, creram no seu nome” (Jo.2.23) “Com isto,
reconheceu o pai ser aquela precisamente a hora em que Jesus lhe dissera: Teu
filho vive; e creu ele e toda a sua casa” (4.53); “Então, afirmou ele: Creio,
Senhor; e o adorou” (9.38). “Muitos, pois, dentre os judeus que tinham
vindo visitar Maria, vendo o que fizera Jesus, creram nele” (11.45)
Entretanto,
assim como seus ensinos seus atos milagrosos estavam sujeitos a avaliação e
rejeição. Já no início do seu ministério a incredulidade já estava anunciada:
“Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais
que ele fazia, creram no seu nome, mas o próprio Jesus não se confiava a
eles, porque os conhecia a todos” (Jo.2.23-24). Em outras ocasiões, o
milagre promoveu completa rejeição. No caso da cura da aleijado do tanque de
Betesda, por realizar no sábado o milagre, os fariseus passaram a perseguí-lo
(Jo.5.16). Tal rejeição torna-se discussão e Jesus deixa clara a opinião dos
fariseus a Seu respeito: “Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés,
também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. Se,
porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?”
(Jo.5.46-47). No caso da cura do cego de nascença a incredulidade é
clarividente, pois pesquisam para saber se aquele que se dizia cego o era de
fato: “Não acreditaram [criam] os judeus que ele fora cego
e que agora via, enquanto não lhe chamaram os pais” (Jo.9.18). Outro exemplo
interessante desse fato é visto entre os judeus descrentes: “E, embora tivesse
feito tantos sinais na sua presença, não creram nele” (Jo.12.37). A interpretação
que João tem desses fatos é que eles são cumprimento profético: “para se
cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor, quem creu em nossa
pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Por isso, não podiam
crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o
coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se
convertam, e sejam por mim curados” (Jo.12.38-40).
Assim,
ainda que os milagres tivessem claro papel evangelístico, também funcionaram como
problema para a compreensão sobre a verdadeira pessoa de Cristo. Aliás, esse é
um dos muito motivos pelos quais a pessoa de Cristo continua sob suspeita.
Propósito de Incentivar a Perseverança
Como já
temos mencionado, existe uma importante variante textual em Jo.20.31 que sugere
que o propósito do livro é fortalecer os cristãos na manutenção da sua fé em
Cristo. Observe como poderia ser traduzido o verso: “Na verdade, fez Jesus
diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram registrados para que continuais a crer que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome”
Embora
contextualmente deslocada, a sentença pode ser muito bem compreendida como um
convite a manutenção da Fé. Já temos dito que essa leitura parece aceitável
pelo fato de que todos os livros do NT foram primeiramente escrito para
cristãos, o que nos leva a crer que João teria feito o mesmo com seu evangelho.
É
importante lembrar o leitor que apenas uma das leituras variantes é a original
e, portanto apenas uma das conclusões sobre o propósito do livro está correta.
Entretanto, mantemos aqui essa declaração, pois os mais conceituados textos
críticos optaram por manter as duas leituras, por serem consistentes externa e
internamente.
Um
detalhe que chama a atenção é que a relação de variante entre o aoristo
subjuntivo e o presente subjuntivo do verbo crer acontece mais algumas vezes no
evangelho. Observe:
ἀπεκρίθη
᾿Ιησοῦς καὶ εἶπεν αὐτοῖς· τοῦτό ἐστι τὸ ἔργον τοῦ Θεοῦ, ἵνα πιστεύσητε
εἰς ὃν ἀπέστειλεν ἐκεῖνος – [Segunda pessoa do plural do Aoristo Subjuntivo
Ativo] – 6.29
Respondeu-lhes
Jesus: A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi
enviado – 6.29
Nesse
texto o mesmo fenômeno acontece: A leitura variante atesta o mesmo verbo
(πιστεύω) só que no Presente Subjuntivo Ativo, o que faria com que o texto
fosse entendido assim:
ἀπεκρίθη
᾿Ιησοῦς καὶ εἶπεν αὐτοῖς· τοῦτό ἐστι τὸ ἔργον τοῦ Θεοῦ, ἵνα πιστεύητε
εἰς ὃν ἀπέστειλεν ἐκεῖνος – [Segunda pessoa do plural do Presente Subjuntivo
Ativo] – 6.29
Respondeu-lhes
Jesus: A obra de Deus é esta: que continueis a crer naquele que por ele
foi enviado – 6.29
Essa
leitura nesse discurso parece consistente com o público a quem se dirige o
Senhor nessa sentença, e favorece a idéia de que esse evangelho tenha sido
escrito com esse propósito. Mas, é importante demonstra que o mesmo fato
acontece em quase todas as ocasiões em que se encontra o verbo crer no aoristo
subjuntivo ativo (13.19; 19.35; 20.31).
Essas
alterações sejam do aoristo para o presente ou o inverso, podem ter acontecido
por mera desatenção, visto que é necessário a alteração de apenas uma simples
letra para o que o sentido seja radicalmente alterado. Entretanto é digno de
atenção, que uma simples nota de João no relato da crucificação de Cristo,
favorece a idéia de um Evangelho primeiramente escrito para cristãos com o
objetivo de fortalecer a fé, observe:
καὶ ὁ
ἑωρακὼς μεμαρτύρηκε, καὶ ἀληθινὴ αὐτοῦ ἐστιν ἡ μαρτυρία, κἀκεῖνος οἶδεν ὅτι
ἀληθῆ λέγει, ἵνα καὶ ὑμεῖς πιστεύσητε
Aquele
que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz
a verdade, para que também vós creiais. 19.35
καὶ ὁ
ἑωρακὼς μεμαρτύρηκε, καὶ ἀληθινὴ αὐτοῦ ἐστιν ἡ μαρτυρία, κἀκεῖνος οἶδεν ὅτι ἀληθῆ
λέγει, ἵνα καὶ ὑμεῖς πιστεύητε
Aquele
que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz
a verdade, para que também vós continueis a crer. 19.35
Essa
declaração do autor para o leitor sugere que ele tem os olhos na manutenção da
fé, e não da promoção da mesma. Em todos os casos a disputa textual é acirrada
e as preferências voltam-se para muitos lados, entretanto, é fundamental que se
diga que são variantes possíveis e em nada desmerecem o Evangelho, muito pelo
contrário, demonstram o propósito do evangelho de um modo pertinente ao
ambiente em que era primeiramente escrito.
Propósito Teológico
No que se
refere a teologia, João assegura que os milagres registrados atestam que Jesus
é o Filho de Deus: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos
outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram
registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e
para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo.20.31).
A
designação Filho de Deus atesta a divindade de Cristo: “Quem nele crê não é
julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do
unigênito Filho de Deus” (Jo.3.18). O uso da expressão unigênito Filho de
Deus (gr. tou monogenous uiou tou theou) é uma das formas pelas quais
João apresenta Cristo como divino, e essa definição é uma
exigência para salvação. Ou seja, ainda que as opiniões sobre Cristo fossem
divergentes já nessa ocasião, é certo para João que Jesus é Deus. Aliás, a
linguagem de João aqui parece trazer a tona uma referência ao gnosticismo
incipiente e sua desconexão da pessoa de Cristo Deus Pai (1Tm.1.4).
A
designação de Filho assumida por Cristo expressa uma relação familiar com
o Deus Pai. Tal ênfase é explicitamente majoritária em João, pois enquanto os
sinóticos atestam esse fato em aproximadamente 24 ocasiões, em João encontramos
cento e seis vezes. Esse fato é visto desde o prólogo do evangelho: “E o Verbo
se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo.1.14). João Batista também
atesta o mesmo fato: “Pois eu, de fato, vi e tenho testificado que ele é o
Filho de Deus” (Jo.1.34).
Uma
situação que pode testificar a Pessoa de Cristo como Filho de Deus é encontrada
no encontro de Natanael com Cristo (Jo.1.44-51). No exercício de sua
onisciência, Jesus demonstra que o que Felipe disse a Seu respeito é
verdadeiro, e Natanael afirma: “Então, exclamou Natanael: Mestre, tu és o
Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (Jo.1.49). Ao ouvir isso, Jesus
garante que Natanael veria sinais mais evidentes de que Ele o é (Jo.1.50). A
cena que segue a esse diálogo nos conta seu primeiro milagre (sinal; gr. semeion),
com o qual Ele manifestou sua Glória (Jo.2.11).
Ao ter
conhecimento dos atos de Cristo, o próprio Nicodemos atesta: “Rabi, sabemos que
és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes
sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo.3.2). Esse
reconhecimento é fundamental para compreender alguns dos milagres de Cristo
narrados em João, como por exemplo a cura do filho do oficial do Rei
(Jo.4.46-54). Nessa ocasião, apenas o declara a cura do filho do oficial à
distância foi suficiente para que ele fosse curado. O fato de que o texto narra
a expressão de pontualidade da cura (v.53) demonstra que Aquele que realizara o
Milagre é Filho de Deus. E esse teria sido apenas o seu segundo milagre (sinal;
gr. semeion) narrado no evangelho.
Propósito Apologético
Carlos Osvaldo,
sobre o assunto, atesta:
Infelizmente,
a maioria dos comentaristas têm enfatizado este propósito evangelístico do
evangelho sem atentar para o propósito apologético ou polêmico, em que João
enfatiza a glória do Verbo (cf. 1.14; 17.1, 5) e a realidade de sua encarnação.
João
também atesta a Messianidade de Jesus quando o chama de Cristo (ungido,
messias): “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros
sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome” (Jo.20.31).
Alias,
essa ênfase é muito forte na literatura joanina: “Quem é o mentiroso, senão aquele
que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o
Filho” (1Jo.2.22). A preocupação com a apresentação da Messianidade de
Cristo também é vista na reação das pessoas que estavam próximas a Ele. O
convite de Felipe a Natanael deixa isso transparecer, quando diz: “Achamos aquele
de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o
Nazareno, filho de José” (Jo.1.45). A resposta de Natanael também testifica
isso: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (v.49).
A
freqüente negativa de João Batista em relação a sua identidade com o Messias,
também sugere que João intencionava levar seus leitores a conhecer o Verdadeiro
Cristo na pessoa de Jesus e rejeitar a suposta autoridade que João pudesse
exercer. Note que João deixa isso evidente no evangelho, desde o seu início:
“Este foi o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém
sacerdotes e levitas para lhe perguntarem: Quem és tu? Ele confessou e não
negou; confessou: Eu não sou o Cristo” (1.19-20). Pouco à frente os
fariseus o questionam: “E perguntaram-lhe: Então, por que batizas, se não és
o Cristo, nem Elias, nem o profeta?” (1.25). Isso acontece no mesmo
capítulo em que o Evangelista testifica a superioridade de Cristo sobre Moisés
(1.17) e que os primeiros discípulos o encontram e o chamam de Messias, que
traduzido quer dizer Cristo (1.41ss). Pouco à frente, João mesmo demonstra sua
consciência de que não apenas não é o Cristo, mas lhe é apenas um precursor:
“Vós mesmos sois testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui
enviado como seu precursor” (3.28).
É válido
demonstrar que por quase todo o evangelho a pergunta sobre a Messianidade de Jesus
aparece na voz de diferentes pessoas. A mulher samaritana tem certa consciência
de quem é o Messias esperado e sobre ele atensta: “Eu sei, respondeu a mulher, que
há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as
coisas”. Pouco após seu rápido encontro com Jesus vai à cidade e declara:
“Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será
este, porventura, o Cristo?!”. Diante de sua própria convicção de quem é o
Messias, essa mulher convida outras pessoas a verificarem se isso é de fato
verdade.
No
capítulo sete uma complicada situação arma-se diante do diálogo de Jesus os
fariseus e a reação da multidão, e em grande parte a pergunta que se faz é se
esse é o Messias, ou se ele se considera como tal sem o ser (7.26-42). É
interessante notar a crescente rejeição da Messianidade de Jesus pelos judeus,
observe: “Eis que ele fala abertamente, e nada lhe dizem. Porventura, reconhecem
verdadeiramente as autoridades que este é, de fato, o Cristo? Nós, todavia,
sabemos donde este é; quando, porém, vier o Cristo, ninguém saberá donde ele
é” (7.26-27); “outros diziam: Ele é o Cristo; outros, porém,
perguntavam: Porventura, o Cristo virá da Galiléia?” (7.41).
Essa
rejeição tornou-se em retaliação àqueles que viessem a confessar que Jesus era
o Messias: “Isto disseram seus pais porque estavam com medo dos judeus; pois
estes já haviam assentado que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse
expulso da sinagoga” (9.22). Mas, ainda assim, entre os seguidores de
Jesus, não eram poucos os que o confessavam, a despeito do risco de se assumir
isso (11.27).
Considerando
a hostilidade dos judeus para com a compreensão de Jesus como Cristo, é justo
pensar que João escreve um tratado apologético no sentido de defender a
completa e perfeita Messianidade de Cristo.
Category: Reflexões
0 comentários